A realidade dos Sem-Abrigo em Coimbra, pela ONG Hemisférios Solidários:
Para além dos muros e dos números: reflexões acerca da 1ª Contagem e Caracterização de Pessoas sem-abrigo na cidade de Coimbra.
Só se combate eficazmente o que se conhece.
Laborinho
Lúcio
A Associação Hemisférios Solidários, é uma organização
sem fins lucrativos (ONGD) que tem como fim a intervenção sociocultural
comunitária na promoção dos Direitos Humanos.
Este ator social sediado em Coimbra, tem dado uma
particular atenção aos problemas das pessoas em situação de sem-abrigo, dado
que estes cidadãos vivem em Portugal situações de pobreza extrema o que
configura múltiplas violações de direitos humanos.
Atendendo à urgência sentida de desenvolver
estratégias de intervenção social que contribuam para a resolução dos problemas
das pessoas em situação de sem-abrigo, a Hemisférios Solidários decidiu apresentar
no 2º semestre de 2012 às instituições integradas no PISAC (Projeto de
Intervenção com os Sem-Abrigo do Concelho de Coimbra), uma proposta para um
estudo aprofundado sobre a realidade da pessoa em situação de sem-abrigo em
Coimbra e que seria operacionalizado através de uma contagem e caracterização
desta população.
Este estudo que pretendemos fazer é necessário,
atual e pertinente dado que estamos a sofrer as consequências da crise económica
e financeira que se traduz em aumentos significativos do desemprego e da
pobreza, bem como tornou ainda mais difícil a integração social em resultado
dos cortes nas políticas sociais. Pretende ser uma investigação para a ação e
para a mudança social, colmatando um deficit de conhecimento, dado que em Portugal
não existem estudos atualizados sobre a realidade e os problemas das pessoas
sem-abrigo, nem tão pouco sobre os custos que a manutenção deste problema
acarreta no orçamento da Segurança Social. A melhoria e a eficácia das
políticas sociais deviam ser repensadas à luz do conhecimento e a sua
racionalidade deveria traduzir justiça e bem-estar social. Não podemos deixar
de ser críticos perante os muros de uma realidade social que muitas vezes não
quer ver o evidente: a mudança é necessária, um novo paradigma no trabalho com
os sem-abrigo é urgente. Muitos argumentos podíamos usar nesta reflexão, mas
fiquemos com os resultados de um estudo realizado por Pomeroy (2005) que
demonstrou que a habitação a preços acessíveis e com apoios, é cinco vezes mais
barata do que certas respostas institucionais para pessoas sem-abrigo (incluindo
prisões, colégios de reinserção e hospitais psiquiátricos) e cerca de metade do
custo dos abrigos de emergência.
Foram estas e muitas outras questões, que juntaram
pessoas interessadas em fazer ruturas nas visões assistencialistas da questão
social e que decidiram tomar em mãos o grande desafio de realizar em Coimbra, a
1ª Contagem e Caracterização de Pessoas sem-abrigo na cidade.
Esta iniciativa exigiu meses de pesquisa de boas
práticas, troca de informação com diferentes parceiros internacionais, muitas
horas de reflexão e discussão com o grupo de investigação e com o PISAC, contactos
com voluntários, preparação de documentação, etc. Depois de muito trabalho e de
se conseguir superar muitas dificuldades, avançou-se com a formação de
voluntários, requisito fundamental e chave de sucesso de toda a operação.
Foi pelas 9:00 do dia 30 de Janeiro que se iniciou
a 1ª Contagem e Caracterização de Pessoas sem-abrigo na cidade de Coimbra. Participaram
na contagem 36 voluntários, distribuídos em grupos de três pessoas, a quem foi
atribuído um Cartão de Identidade de Entrevistador e que foi criado de
propósito para a operação de contagem e caracterização. A cidade de Coimbra foi
dividida em cinco Zonas e cada equipa cobriu uma zona específica. A contagem foi
feita de dia e de noite em ”equipamentos sociais” e na “Rua”. Foram dias intensos
de identificação e visita a locais de pernoita e a locais de habitação precária
ou inadequada em uso por parte de pessoas em situação de sem-abrigo. A pé foram
percorridos centenas de Km de ruas e visitadas habitações ocupadas, fábricas,
pontes, viaturas, armazéns, edifícios colapsados, com o objetivo de ouvir e dar
voz às preocupações e necessidades das pessoas sem-abrigo da cidade. Este processo
de contacto aprofundado com as vítimas da exclusão económica e social na
cidade, decorreu também na maior parte das instituições que integram o PISAC, que
abriram as portas aos entrevistadores para que os utentes pudessem também ser
entrevistados com base no mesmo Protocolo.
O objetivo desta contagem e caracterização, não foi
só a obtenção de dados quantitativos relativos às pessoas sem habitação, mas
fundamentalmente fazer um diagnóstico sobre as características e espectativas
destes cidadãos, partindo da informação dada pelos próprios.
Este trabalho foi um exercício
cívico de solidariedade e de democracia, na medida em que os voluntários participantes
estabeleceram relações, ouviram, dialogaram e conviveram com pessoas em
situação de sem-abrigo que vivem na rua ou estão temporariamente institucionalizadas.
Esta foi uma iniciativa importante
e inovadora iniciativa, tanto na cidade de Coimbra, como no resto do país, pois
que pela 1ª vez se utilizaram instrumentos científicos que garantem a qualidade
técnica da intervenção e alguns deles já em uso noutros países. Ao contrário
das contagens feitas em Madrid, Paris, Londres, Nova York, Toronto, Buenos
Aires, etc, em Coimbra foi feita a contagem e em simultâneo uma caracterização
profunda das pessoas em situação de sem-abrigo para que seja possível construir
Planos Individuais de Inserção, eficazes e eficientes.
Sem dúvida nenhuma, esta foi
uma iniciativa complexa com respeito à metodologia, mas também porque o
universo dos inquiridos são um grupo social invisibilizado e que quer
anonimato. Por isso qualquer atuação que suponha identificar e caracterizar
este fenómeno social, requer uma metodologia muito específica.
Por esta razão reunimos no
nosso protocolo de entrevista quatro instrumentos diferentes, mas que foram ao
encontro das nossas preocupações e que são ótimos instrumentos de diagnóstico
para uma intervenção sustentada na resolução dos problemas das pessoas em
situação de sem-abrigo e que foram os seguintes:
1. Rehousing Triage and Assessment Survey (RTAS) - é um
questionário usado para avaliar a saúde e a vulnerabilidade das pessoas
sem-abrigo de uma comunidade. É um instrumento que permite priorizar e adequar
recursos em função das necessidades do cliente e garantir que os apoios e a
habitação disponibilizados numa comunidade estão acessíveis para quem mais
necessita deles. As questões abordadas pelo RTAS, dizem respeito a aspetos
demográficos, história de vida e habitacional do sem-abrigo, vulnerabilidade,
sistemas de interação, fonte de rendimentos e preferências habitacionais.
2. Escala
de depressão CES-D (Centre for Epidemiologie Studies of the National
Institute of Mental Health - USA) é um instrumento utilizado em estudos que
comparam a sintomatologia depressiva entre diversas populações de uma
comunidade, tendo-se revelado um preditor sensível de diagnóstico da depressão,
com indícios de confiabilidade e validade satisfatórios. A sua aplicação a
pessoas sem-abrigo foi feita por Ritchey (1990) que verificou na sua amostra um
elevado nível de angústia entre os sem-abrigo. O seu estudo revelou também que
as pessoas sem-abrigo sofrem de altas taxas de sintomatologia depressiva, o que
é indicativo de um sofrimento extremo.
3. Teste de Objetivos de Vida - PIL-R (Purpose in Life Test) é um instrumento que tem como fim avaliar quais os objetivos,
ambições, metas e aspirações que imprimem um sentido e significado pessoal na
existência do individuo. O PIL-R é
um indicador da capacidade do individuo estabelecer objetivos, metas e aspirações
e ainda conhecer como é que cada pessoa avalia as suas vivências e se relaciona
com a sua própria vida. Para além disso, o PIL-R ao estrutura-se à volta de
dois fatores, isto é, itens que integram uma componente afetiva (sentimentos e
experiencias de vida, objetivos na vida, satisfação de vida, qualidade de vida)
e itens que integram uma dimensão cognitiva (o significado atribuído à
existência do ser humano, o sentido da vida, a consciência do significado e do
sentido da vida) o instrumento revela imensas potencialidades ao revelar
dimensões e experiencias pessoais relevantes (Peralta 2008).
4. Questionário de Percepção de Apoio Social avalia as dimensões de apoio emocional,
conselho e ajuda e a reciprocidade no apoio. Oferece também uma pontuação total
para o apoio funcional e a reciprocidade no apoio, bem como o número dos
componentes da rede do apoio. Este instrumento permite ademais obter pontuações
separadas para as diferentes fontes de apoio social: familiares, vizinhos,
irmãos, filhos/as, etc. ( Gracia, Herrero e Musitu, 2002).
Foi com estes os instrumentos que a Associação
Hemisférios Solidários fez a “1ª Contagem e
Caracterização das pessoas em situação de sem abrigo em Coimbra". Apesar
da complexidade e exigência do processo, foram contactadas 262 pessoas, sendo
que destas 178 colaboraram nas entrevistas e
outras 84 foram sinalizadas. Foi dada voz às pessoas em situação de sem-abrigo e
os seus problemas ouvidos: a pretexto duma entrevista foi dada esperança! O
processo de ajuda pode ser curto ou longo, fácil ou difícil, dependendo muito
da situação de vulnerabilidade a que a pessoa se encontra exposta e também à
duração da sua condição de sem-abrigo, mas com os dados obtidos a Associação
Hemisférios Solidários pretende sustentar cientificamente as suas opções de
trabalho, com vista à eliminação dos problemas das pessoas sem-abrigo.
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